Poucos dias depois que terminei a leitura de Torto Arado, tive essa maravilhosa surpresa (na verdade não foi tão surpreendente) de que ele ganhou o Prêmio Jabuti de 2020.
Quando me indicaram esse livro, publicado ano passado, os comentários que mais ouvi diziam que ele já tinha nascido um clássico: vai sobreviver ao longo das gerações, vai ser bastante lido, discutido e, quem sabe, vai ser dessas obras que serão cobradas em vestibular.
E por que, então, um livro tão recente teve esse poder de deixar uma marca tão profunda e projetar um futuro tão longo na nossa literatura?
Para começar, o autor – Itamar Vieira Junior – usou como inspiração as obras regionalistas que retratam a dura vida dos sertanejos, como as de Raquel de Queiroz e de Graciliano Ramos. Bem, se você prefere fugir desse tipo de livro, os famosos “clássicos da literatura brasileira”, porque antigamente se sentia obrigado a ler no colégio, essa pode ser uma oportunidade para dar uma nova chance. Isto porque Itamar conta uma história nesse mesmo sertão e com essa mesma gravidade, mas faz nos seus termos.
Primeiro, o autor escreveu com uma linguagem simples, feita para nós, leitores deste tempo. Simples, mas não simplória. Pesou bem cada palavra para construir essa trama bem amarrada, que retrata a complexidade das personagens e da realidade em que vivem. Assim, com uma narrativa fluida, escancara, de modo sutil, a miséria a que certos brasileiros são submetidos.
Segundo, a trama gira em torno das vidas de duas irmãs que, no decorrer da história, se reconhecem enquanto quilombolas, vivências que, tirando algumas exceções, não costumam receber tanto destaque na literatura (ainda bem que, aos poucos, isso está mudando).
As duas irmãs, Bibiana e Belonísia, vivem com a família na fazenda de Água Negra, onde trabalham sem descanso, pois em troca da permissão de lá poder residir, devem dar grande parte do que plantam para o dono da terra. Não recebem pagamento e, no tempo livre, têm que cultivar o solo para sua própria subsistência. Além de outras proibições, só podem construir casa de barro, que em pouco tempo se desfaz debaixo do Sol e da chuva que assola a região, para que não possam, nunca, provar que tem a posse e o direito à propriedade de seu pequeno pedaço de chão.
Apesar de ser uma história tão brasileira, o local onde o enredo é ambientado – a Chapada Diamantina – serve de palco para abordar questões universais da condição humana. Tanto que a publicação no Brasil só ocorreu depois do livro ter sido lançado em Portugal, por vencer o Prêmio LeYa em 2018, premiação literária de maior valor para originais em língua portuguesa. A obra foi bem recebida pelos portugueses pela identificação que sentiram, tanto por causa do nosso passado em comum, como pela história da servidão que havia no campo em Portugal, antes da queda do salazarismo.
Logo nas primeiras páginas, o livro (publicado pela editora Todavia) me prendeu porque começa com a tensão de um acidente vivido pelas duas irmãs que resulta na perda da língua de uma delas. Assim, uma passa a ser a voz de ambas, e um dos aspectos que achei mais interessante, pois ainda não é tão retratado, foi ler as descrições da linguagem de sinais por meio da qual elas se comunicam entre si. E mais ainda porque só descobrimos qual das duas perdeu a fala no final da primeira parte do livro, que é narrada por Bibiana. Belonísia é a narradora da segunda parte, enquanto a terceira e última quem narra é uma entidade do Jarê, religião de matriz africana e principal crença da comunidade em que vivem. Daí você também tira a camada de magia e religiosidade, bem presente e naturalizado no enredo e na visão de mundo das personagens.
Além de descendente de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria e de indígenas Tupinambás, Itamar é geógrafo e antropólogo. Por isso, foi capaz de dar voz de forma singular a cada uma dessas mulheres, com verossimilhança e muito cuidado. Pela sua escrita, podemos passear pelos rios, pelas plantações, pelas brincadeiras do Jarê e por toda a riqueza do sertão baiano. Já pela maneira com que suas personagens tratam a terra, percebemos que ela é mais do que sua morada. Não é um objeto: é uma extensão de suas vidas.
Já consigo imaginar essa história nas telas e também nas páginas de uma Graphic Novel. Mas pode ter certeza que vale a pena ler a obra original.