Como a indústria, as mídias e os consumidores irão se adaptar ao que o futuro dos jogos eletrônicos reserva
A Google Developers Conference de 2019 trouxe talvez uma das maiores novidades dentro do universo dos games no ano: a entrada de cabeça da Google no mundo do entretenimento eletrônico. O Stadia é uma plataforma de transmissão (stream) de jogos em tempo real e, como prometido pela própria Google, sem atraso, alta latência, lag, delay ou como preferirem chamar. A plataforma contará com um controle próprio, terá jogos próprios, desenvolvidos diretamente para a plataforma e também contará com títulos de empresas terceiras, como o já anunciado Doom Eternal. Além disso, empresas como a Ubisoft, Id Software e grandes nomes da indústria como Dylan Cuthbert (um dos produtores de Star Fox) e Jade Raymond (hoje VP da Google e que trabalhou na série Assasin’s Creed) confirmaram estar trabalhando em jogos voltados exclusivamente para a plataforma.
Além do seu conceito base, o Stadia traz diversas mudanças reais sobre como podemos jogar. Acessar um jogo que um streamer está jogando no mesmo momento, mudar a plataforma jogada (da TV para o celular, por exemplo) de maneira instantânea e sem tempo de carregamento de dados, além de troféus e desafios propostos pelos próprios jogadores em tempo real. Phil Harrison, uma das mentes por detrás do projeto, afirmou que um dos objetivos da plataforma é a possibilidade do jogador utilizá-la em uma variedade de aparelhos diferentes com poucos requisitos técnicos para tal. Durante a apresentação foi mostrado como um computador portátil, pouco potente, pôde rodar Assassin’s Creed Odyssey instantâneamente e em alta capacidade gráfica.
Lidando com mudanças na maneira de jogar
A história dos jogos eletrônicos sempre foi permeada por diversas mudanças dentro da sua mídia, seus hardwares e seus periféricos. Posso aqui listar tantas mudanças quanto os anos que passaram: desde as coisas mais básicas como formato do controle, passando pelos cartuchos, CD’s, DVD’s e Blu-Rays, também tivemos todo tipo de interação fora do sofá: controlamos com nosso corpo, como no Kinect, e também com movimentos das nossas mãos, como no Wiimote Logicamente com o advento da internet, novas possibilidades de jogar se abriram e hoje podemos nos conectar com jogadores de todo o mundo. Mas dentre todas essas mudanças que nos acostumamos, o que o Stadia realmente nos traz de novo?
Há tempos a indústria vem flertando com a ideia do “jogar em todo lugar”, dos exemplos recentes, acredito que o PlayStation Vita, apesar do seu insucesso, tenha sido um dos aparelhos que prometia interligar a experiência do console de mesa para um portátil. No entanto, problemas com controle e conexão não deram ao Vita uma experiência tão agradável assim de ser feita. O Stadia quer, de fato, elevar isso a outro patamar: basta ter uma conexão estável e você pode sair da TV e ir para seu celular, laptop, PC ou qualquer outro aparelho compatível com o que você está jogando. Além de permitir todo e qualquer periférico, seja o controle do próprio Stadia, seja mouse e teclado, o que abre especulações para os usuários de controles já estabelecidos no mercado, como os da Microsoft e o Dual Shock 4 da Sony, se o aparelho aceitará nativamente inputs desses joysticks.
Dito isso, haverão mudanças e essas mudanças poderão servir muito bem ao jogador. Ter acesso a uma biblioteca vasta de jogos com este mesmo acesso praticamente sem restrições por aparelho é, de fato, algo que pode marcar o futuro dos jogos eletrônicos. O futuro nem sempre chega batendo na porta e pedindo licença, por vezes o futuro arrebenta a fechadura com os dois pés e nos mostra novas possibilidades em um tempo menor que esperávamos. Caso a qualidade prevista pela Google seja confirmada, jogar videogame se tornará algo ainda mais trivial do que já é.
Não somente os jogadores, mas os desenvolvedores de jogos também podem ter novas e mais abrangentes possibilidades de criação. O Stadia oferece suporte a diversas plataformas e engines de criação de jogos, como Unity, Unreal 4, entre outras, abrindo um leque de oportunidades e variedade as empresas, grandes e pequenas, do desenvolvimento. Aliando isso a liberdade de periféricos utilizáveis já citadas aqui.
E os riscos?
Claro que um sistema e aparelho mais barato e simplificado com acesso a jogos de alta qualidade é algo inquestionavelmente bom para todos na indústria. A tecnologia não é nova, lembrando que serviços como a PSNow já existe e funciona relativamente bem (para quem mora nos EUA), mas é inegável que as grandes empresas olham para o Stadia com mais entusiasmo que antes, como se algo diferente estivesse por aí.
Nem tudo são certezas: é impossível não perguntar-se se somente aqueles com excelente conexão a internet poderão usufruir de maneira satisfatória de tal serviço, ora, a própria Google recomenda que haja, no mínimo, uma conexão de 25 megabytes por segundo, quando a média brasileira de conexão para downloads é de 24,77mbs, o que significa que provavelmente a maioria dos residentes no Brasil terão o Stadia fora de alcance. Fica no ar a dúvida: será que com essa nova demanda, os provedores de banda larga do país aumentarão a velocidade média de nossas conexões? Ou seria isso pedir demais para um mercado que é conhecido por nem sempre prover serviços de qualidade? Muitas pessoas são excluídas da indústria dos jogos por não poderem contar com um console ou PC de última geração, será que agora elas também serão excluídas por não terem uma conexão boa o suficiente, já que será possível ter um hardware competente em mãos?
Outro grande questionamento que vem sobre o Stadia é quanto a preservação de sua biblioteca de jogos pessoal. O que acontece caso, por algum motivo, você cancele sua assinatura? Por quanto tempo os servidores estarão funcionando? E se alguma das licenças de jogos de uma determinada empresa não for renovada? Isso acontece com mais frequência do que imaginamos. O que acontece então com meus jogos e meu progresso? Vale dizer que diversos jogos com modo online tiveram seus servidores desligados nos últimos anos, será que o mesmo começará a acontecer com jogos single-player a partir do advento do stream? Imagine que daqui a dez anos, jogos como Red Dead Redemption 2 ou Breath of the Wild não pudessem mais ser jogados?
Talvez muitas dessas perguntas serão respondidas com maiores detalhes quando estivermos próximos ao lançamento e a Google revelar mais sobre seu serviço e talvez muitas dessas perguntas sejam alarmistas demais, visto que os mesmos serviços de bibliotecas virtuais da Sony e Microsoft continuam firmes e fortes. Porém creio que seja importante que a Google mostre ao seu consumidor aonde ele está colocando seu dinheiro e seu tempo livre.
É o fim dos consoles?
Os alarmistas de plantão já classificam como essa sendo a última geração de consoles feita e que o streaming e os hardwares poderosos ficarão para trás. Difícil hoje não vislumbrar que a mudança que o streaming bem executado pode trazer mude o status quo da maneira que consumimos jogos eletrônicos de uma maneira geral, mas não acredito que essa seja uma previsão para um futuro a tão curto prazo assim. A previsão de “fim dos consoles” e “streaming é o futuro” está aí há mais de uma década, porém nunca se esteve tão próximo de um serviço confiável e bem executado como a Google propõe. É possível que nenhuma dessas previsões sejam concretas, mas mesmo as pessoas que fazem a indústria de dentro já não acham isso e muita coisa pode mudar nos próximos anos.
Caso seja realmente bem feito, o streaming pode trazer uma nova maneira de jogar, talvez popularizando ainda mais essa indústria. No entanto não posso deixar de pensar que uma guinada completa para o streaming, tão de repente assim, possa ser completamente benéfica a todos os jogadores. Estar online o tempo todo para jogar é algo que foi provado e reprovado por todos em diversas ocasiões e o Stadia é exatamente isso elevado a uma nova potência. E parece ser esse o futuro a ser vislumbrado.