Um filme sobre amizade, não sobre dragões, que remonta uma parte importante da vida de J.R.R. Tolkien
Sempre me interesso por filmes biográficos. Acho desafiador transformar 40, 60 e mais de 80 anos da vida de uma pessoa conhecida em um filme de pouco mais de 2 horas. Biografias sempre geram polêmicas, afinal o tempo cobra recortes e os recortes nem sempre agradam a todos. Tolkien (disponível a partir de abril no TelecinePlay), dirigido pelo finlandês Dome Karukoski, sofre um pouco, como uma boa parte das biografias que viram filmes.
O roteiro, assinado por David Gleeson e Stephen Beresford, escolhe como recorte a fase da adolescência de Ronald (como era chamado Tolkien) enfrentando a vida de órfão e a descoberta do seu grande amor: Edith. Essa narrativa caminha em paralelo com sua vida na faculdade de Oxford, já mais velho, e sua participação na Primeira Guerra Mundial. Esses são os bons ingredientes dramáticos que entrega uma bela história de amizade, romance e o rompante da guerra. A construção da sua sociedade de amigos que juntos criam histórias, vivem a arte e se fortalecem é o grande tesouro dramatúrgico.
Há um esforço de agradar os fãs das obras de Tolkien, principalmente, os fãs dos filmes. Esse mesmo esforço não foi dado aos fãs das obras literárias. Pouco se vê sobre sua profundidade acadêmica ou como ele se desenvolveu até a escrita de seus livros. Esse é um pequeno erro de alinhamento do filme que acabou sendo questionado pelos dois tipos de fãs.
A excelente trilha sonora de Thomas Newman lembra Howard Shore (compositor da trilha dos filmes “Senhor dos Anéis” dirigido por Peter Jackson). Senão pelos ouvidos, vai pela visão. Alguns efeitos em computação gráfica forçam a presença de sombras da morte, em meio a guerra, e olhos de fogo que lembram o olho de Sauron. Os cavalos no front da Primeira Guerra são confundidos com cavaleiros da “pretensa” Terra Média nas alucinações de Tolkien.
Tudo isso é claramente uma tentativa de estimular o engajamento do filme através de fãs e um possível buzz. Por outro lado, os importantes episódios na vida de Tolkien que o inspiraram a escrever “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis” aparecem em pequenas e poéticas pinceladas pouco aprofundadas, quando poderiam trazer ainda mais força a boa interpretação de Harry Gilby e Nicholas Hoult que interpretam Ronald em idades diferentes.
A guerra acaba sendo o marco maior do filme
Ela é ao mesmo tempo a força motriz e a ceifadora de vidas. Elemento comum nas biografias de homens e mulheres daquela época, a guerra é um triste fato. A amizade e o amor que foram formadores da personalidade de Tolkien se juntam as dores da guerra que destruiu as mesmas torres da amizade. Quantos “Tolkiens” deixaram de existir por causa da Primeira Guerra? Quantos “Tolkiens” não deixam de existir nos conflitos de hoje?
Tolkien entrega um filme honesto com uma excelente direção de fotografia e um recorte de uma vida produtiva bem escolhido, mas peca ao mirar no alvo errado para o engajamento popular. Ele não precisava se parecer em nada com a pirotecnia de O Senhor dos Anéis. A vida já tem suas lutas e suas superações. Como grande escritor e professor que foi, Ronald conseguiu criar mundos, línguas e conflitos que mereciam mais espaço.