Dirigido, escrito e montado por Mike Flanagan (A Maldição da Residência Hill), Doutor Sono é a continuação direta dos eventos de O Iluminado. O medo de revisitar e continuar universos já consagrados é compreensível, como posto pelo próprio Pablo Villaça em sua crítica do mesmo filme: “é mais seguro apostar em algo cujo sucesso foi comprovado nas bilheterias”. Porém, Flanagan se posicionou muito bem fora da curva, e preocupou-se muito em entregar uma obra de arte muito antes de entregar um produto.
Após os traumáticos eventos ocorridos no Hotel Overlook, Danny (Danny Lloyd) e sua mãe Wendy (Shelley Duvall) retornam ao lar e buscam ter uma vida normal. Contudo, os fantasmas psicológicos e materiais continuam a atormentar a vida de Danny, e por tabela, a de sua mãe também. Hallorann (Carl Lumbly) tem papel fundamental e pontual na hora de ajudar o garoto a lidar com sua condição, artifício esse que tem uso e finalidade importante no decorrer do filme. Do outro lado temos o “Nó”, uma seita que se alimenta de almas das crianças que nasceram “Iluminadas” para obterem vida longa, liderados por Rose “The Hat” (Rebecca Ferguson) e que nos leva ao terceiro alicerce de personagens, Abra (Kyliegh Curran), uma jovem garota que possui o mesmo dom e entra em perigo por se tornar alvo da tal seita.
A narrativa em Doutor Sono se divide em 3 núcleos durante todo o primeiro ato. Este que é bastante arrastado e prolixo, salvo em alguns pontos, principalmente pela atuação de Ewan McGregor (Danny adulto). Vemos uma entrega de personagem bastante convincente e dedicada, conseguimos comprar a decadência de um ser humano traumatizado e arrasado pelos eventos fora de seu controle e que nunca cicatrizaram totalmente. O álcool é seu sedativo da cruel realidade que vive, depressivo e perdido. Desde o olhar cansado a suas roupas sujas e rasgadas, é deleite assistir Ewan em tela.
O “Nó” tem uma introdução honesta logo nos primeiros minutos de projeção, não é espetacular, mas deixa um mistério interessante para ser desvendado. Ainda no primeiro ato, o longa apresenta uma sequência com a personagem Snakebite (Emily Alyn Lind) bastante ambígua, pois parece que a personagem em questão irá assumir uma posição de grande relevância dentro da história, mas na verdade a sequência era para apresentar um modus operandi de Rose e seu grupo. Há um problema de ritmo notório, há pressa, muitos personagens para introduzir, e muitos que realmente não fazem a mínima diferença.
Abra tem a sequência mais singela e divertida no longa. Traz uma certa leveza e nos faz olhar por outro prisma a questão dos seus dons e o que pode ser feito com eles. Além de, em comparação com o núcleo vilanesco, ser bem melhor apresentado e definido. Sua relação com a condição especial que possui, seus pais e o vínculo entre eles.
O roteiro define bem seu protagonista, e mesmo com a presença forte e importância de Abra na trama, a história entende bem a quem deve dar os holofotes. De acordo com Jon Truby, em The Anatomy of Story, um protagonista precisa ter três coisas: um desejo, uma falha e uma necessidade. Danny e esses três elementos conversam perfeitamente bem em todos os âmbitos da história que está sendo contada. Isso o proporciona camadas, tornando-o sutilmente imprevisível e cada vez mais interessante.
Principalmente quando chegamos ao segundo ato, onde já há uma agilidade e urgência mais palpável, e começamos a ver as interações com os personagens. Vale salientar que há muita química entre Ewan e seu elenco de apoio. Destaque para Billy Freeman (Cliff Curtis), personagem que ajuda e é fundamental para o ponto de virada na vida de Danny. E claro, para Abra, que é onde o filme acerta perfeitamente em sua dinâmica de interações e resoluções de problemas na trama.
Porém, mesmo com pontos bem fortes, temos duas horas e meia de projeção que não se justificam. Sequências muito longas que poderiam ser resolvidas mais rapidamente e ainda surtiriam o mesmo efeito, ou funcionariam melhor. Existem claros momentos que precisam ser trabalhados e apresentados com paciência, mas o filme inteiro não necessita disso.
Aliados a isso, temos uma falha no conhecido “mostre, não diga”. Uma cena muito expositiva e superdidática para explicar quem foram os integrantes do “Nó” e como eles têm que ser temidos. Uma cena que tira o espectador totalmente da imersão do longa e que beira ao risível. Apesar do carisma de Ferguson, a força do roteiro não mora nos seus vilões.
A fotografia, o som e a edição caminham muito bem juntas. Existe muita melancolia e agonia na trilha sonora de Danny, onde ele ainda é alcoólatra, com um corte sempre muito brusco que, unindo-se a um forte acorde, causa um frio na espinha e uma certa desesperança. A câmera é mais compassada e certeira, existem momentos onde a sensação é quase como se estivéssemos nos esgueirando de longe para observar o que está acontecendo. Os ângulos são abertos e contemplativos, e isso é muito importante, tendo em vista que a resolução do filme é exatamente onde o protagonista já esteve antes, em seu passado mais obscuro. E o hotel é amplo, é grande, sendo natural que a fotografia siga esse padrão. Nas cenas de ação, Flanagan não decepciona, existe agilidade, é empolgante, e o silêncio da trilha sonora é mais um acerto para o som do filme.
Cuidado: spoiler do filme.
Já no terceiro ato, é onde somos finalmente recompensados pela jornada. E o longa se mostra deveras corajoso. Há obviamente uma longa e excelente citação a Stanley Kubrick e sua adaptação original. E é aí onde o filme acerta perfeitamente em seu ritmo mais lento. A sequência inteira do Overlook é paciente, e nos proporciona um diálogo excelente entre Danny e seu pai Jack Torrance (Henry Thomas), que agora é um dos espíritos do hotel, o que cuida do bar, ironicamente. É uma conversa onde finalmente Danny expressa toda sua indignação e frustração com o pai, e onde Jack também explica sua apatia com a família.
Fim do spoiler.
A resolução, como dito, é corajosa e o roteiro traz um artifício em um momento bem oportuno. É uma solução simples, mas efetiva, e pelo ponto de vista de criação de história, coube perfeitamente. Não é espetacular, mas resolve e um ciclo se fecha.
Doutor Sono é uma excelente e divertida obra de aventura e suspense, e com uma pitada de terror. Respeita e agrega no universo de O Iluminado, com um protagonista carismático, mesmo tendo problemas de ritmo e uma linguagem certamente prolixa.