O Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais, Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar. A carreira de M. Night Shyamalan é marcada por filmes excelentes e bombas descomunais, com algumas obras vivendo entre esses dois polos. Amado por alguns e incompreendido por milhares, o diretor ficou marcado por seu fascínio pelos plot twists. E todos os seus prós e contras.
A Visita foi um ensaio bem conduzido de seu retorno, brincando de maneira eficiente com um segmento do terror que já faz hora extra no cinema: o found footage. Mas agora ele trouxe o número principal, aquele que vale o ingresso mais caro e todas as pompas do espetáculo. Fragmentado é um reencontro de M. Night Shyamalan com tudo aquilo que apresentou no começo da carreira, ignorando aventuras recentes e conectando-se com sua versão raiz. E como é bom falar isso.
Kevin (James McAvoy) é portador de TDI e possui 23 personalidades dentro de si. Arquitetando um plano maligno para o surgimento de uma 24ª personalidade, chamada de A Fera, algumas dessas versões assumem o controle das demais e sequestram um trio de amigas: Casey (Anya Taylor-Joy), Claire (Haley Lu Richardson) e Marcia (Jessica Sula). É com esse cenário que a mente perversa de Shyamalan se diverte.
Todas as personalidades foram criadas pelo diretor 17 anos atrás, mas somente agora conseguiram sair do papel. A construção do roteiro foi marcada por uma extensa pesquisa sobre o TDI, levando para o filme informações e debates importantes presentes na comunidade médica. A Dr. Karen Fletcher (Betty Buckley) funciona como essa ponte entre os termos técnicos e os leigos. Apesar de abraçar o fantástico em seu último ato, Fragmentado é construído através dos aspectos amedrontadores que permeiam nossa realidade.
É nessa dualidade do natural-sobrenatural que M. Night Shyamalan se sente confortável, impactando o espectador enquanto coloca esses dois mundos em rota de colisão. Com o primeiro e último atos acelerados, Fragmentado possui um desenvolvimento pautado nos detalhes e até mesmo flashbacks. Como todo grande terror de sequestro, os sons e sensações são cruciais para a construção do clima.
Sem jumpscares, Shyamalan conduz o público através dos corredores do cativeiro, com portas trancadas, encanamentos expostos e toda a sorte de alegorias que despertam a imaginação de quem pagou pelo passeio. Não é o susto que te deixa pregado na cadeira, mas a incerteza de qual personalidade de Kevin irá abrir a porta e fazer contato com as garotas. É o terror psicológico, que fica martelando em seu subconsciente. E nesse jogo, o indiano veste a camisa 10.
Dennis, Patricia, Barry, Orwell, Jade e Hedwig são algumas das personalidades de Kevin que se manifestam ao longo do filme. Todas muito bem construídas e com funções definidas. Até mesmo as consideradas malignas trabalham para proteger Kevin de tudo que possa machucá-lo ainda mais. Sejam abusos físicos ou psicológicos. Eles se importam, o que é utilizado como justificativa para os atos cruéis. Outro detalhe precioso é a maneira como a sexualidade está presente em cada uma delas. E esse tema é a ligação entre o “vilão” e a heroína. Ambos fragmentados (não poderia perder essa chance ¯\_(ツ)_/¯ )
Mas, além do talento de Shyamalan, outros dois nomes transformam Fragmentado nesse filmão todo: James McAvoy e Anya Taylor-Joy. James conseguiu criar uma identidade para cada personalidade, com trejeitos, vícios de linguagem e expressões diferentes. Se Dennis é mais centrado, Patricia transmite um ar de perigo, Barry é mais extrovertido e Hedwig é inconstante, o que o torna tão perigoso. Não é atuação de manual, porque isso não se ensina. É talento puro, do tipo que fica marcado na mente.
Duas cenas servem para explicar o quanto James McAvoy foi brilhante: uma conversa entre ele e a doutora Fletcher, lá pelo fim do segundo ato, e outra com Casey já na reta final do filme. Já Anya Taylor apenas comprova que o terror é sua casa. Depois de roubar a cena no excelente A Bruxa, aqui ela não sente o peso da responsabilidade. Sua face expressiva transmite tudo que a cena quer passar. Existe uma inteligência maliciosa em sua personagem, assim como marcas de um trauma tão presente em nossa sociedade. Pode parecer clichê, mas sua semelhança com Kevin é bastante justificável.
Fragmentado é a prova de que talento não se compra em qualquer esquina e que não se perde da noite pro dia. Uma fábula do terror que faz parte de um plano superior e que em breve vai arrebatar todos nós. É M. Night Shyamalan moleque, o M. Night Shyamalan raiz. Seja bem-vindo de volta.