Blade Runner, de Ridley Scott; Divulgação Blade Runner, de Ridley Scott; Divulgação

Blade Runner (1982): Humanos ou Replicantes… eis a questão

Motivado pelo novo Blade Runner 2049 dirigido por Denis Villeneuve e pelo debate com os cosmonautas no Pulsar 28, Enéias Tavares resolveu deixar o Brasil retrofuturista que está acostumado e se aventurar nas paragens distópicas do filme original dirigido por Ridley Scott

Há três destinos que um filme pode ter. Primeiro, ele pode ser lançado e desaparecer dentro de alguns meses, uma vez que pouco fez além de divertir (ou entediar) sua audiência. Segundo, ele pode ser reconhecido – por crítica e público – como referência de qualidade, quer em seus aspectos técnicos, quer em seus aspectos narrativos, tornando-se depois de alguns anos um clássico. Terceiro, o que acontece com pouquíssimas obras, é que um filme force sua própria sobrevivência por sua inerente qualidade, mesmo que esta não seja percebida num primeiro momento, e ainda mais: que com o passar do tempo ele impacte de tal maneira sua mídia a ponto de alterá-la e até mesmo a modificar o mundo que o concebeu. A meu ver, a importância de Blade Runner (1982), está no fato de ele se enquadrar neste tipo, sendo referência cinematográfica e cultural mesmo 35 anos depois do seu lançamento.

Concebido por Ridley Scott depois de assinar a direção de Alien – O Oitavo Passageiro (1979), e inspirado na novela de Philip K. Dick (1928-1982), Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968) a partir do roteiro de Hampton Fancher e David Peoples, Blade Runner foi considerado um fracasso de público e crítica por seus produtores. Estes, interferiram na finalização do filme forçando Ridley Scott a incluir uma narração em off que além de explicar a história de forma pouco brilhante, descola o espectador do universo complexo criado por seus realizadores. Apesar disso, no decorrer da década de 1980, o filme encontrou sua audiência sendo gradativamente reconhecido como um jovem clássico. O relançamento da versão do diretor no início da década de 1990 e o retorno de Scott para restaurar sua versão final em 2007 só vieram a consolidar a importância de um filme que – mesmo que subterraneamente – havia formado o imaginário de cineastas, escritores, designers, arquitetos e acadêmicos. Mas o que há em Blade Runner para merecer tanta admiração?

Primeiramente, o mundo criado por Scott e por sua equipe de produção, capitaneada pelo diretor de fotografia Jordan Cronenweth, pelo designer de produção Lawrecence G. Paull e pelo diretor de arte David Snyder. Quando somos apresentamos a Los Angeles de 2019 e aos Replicantes como seres artificiais criados geneticamente para executar tarefas perigosas demais para seres humanos – seres mais próximos de clones do que de autômatos, robôs ou androides – somos imediatamente jogados em um mundo de eterna noite, de fumaça densa, de luzes multicoloridas e de eterna promessa – terrestre e celeste – de que a vida nas colônias interplanetárias seria melhor do que aqui. Não que isso seja lá muito difícil, afinal falamos de um mundo superpovoado, igualmente hipnótico e poluído, na qual jovens homens envelhecem rápido e onde a solidão é falseada com mecânicos amigos de brinquedo ou com doses  certeiras de uísque no final – ou no início – de cada dia. Nessa metrópole infinitamente horizontal e vertical, carros voadores fazem seu trajeto de um ponto a outro mostrando aos seus pilotos e passageiros que não há para onde fugir ou correr.

Nesse sentido, o intraduzível título do filme – Blade Runners são os caçadores de replicantes fugitivos, comunica o que significa viver nesse universo. No Brasil, o filme ganhou o subtítulo “O Caçador de Androides” enquanto que em Portugal foi chamado de “Perigo Iminente”. A primeira opção traduz o que o termo significa no enredo do filme enquanto a segunda dá conta parcialmente do sentido original da expressão. Mas “Blade Runner”, literalmente, é aquele que caminha no fio da navalha. E este é o destino dos seus personagens: todos, humanos ou replicantes, estão fadados a viver em perigo iminente, uma vez que o caçador definitivo não está fora de nós, e sim inscrito em nosso próprio código genético. “Pena que ela não irá viver. Mas quem vai?”, questiona um dos personagens da película. Deckard pendurado por dois dedos no alto de um dos prédios em meio ao asfixiante embate com o replicante Roy Batty ilustra perfeitamente a dimensão limítrofe no qual todos os personagens se encontram.

Mas de nada adiantaria um mundo complexo sem personagens à altura para povoá-lo. E nesse aspecto, Blade Runner oferece ao seu espectador uma rica e instigante galeria. O policial Bryant (M. Emmet Walsh) serve para dar o tom noir a um filme que poderia ter enveredado para a tradicional ficção científica de aventura. Já o geneticista J. F. Sebastian (William Sanderson) exemplifica o mundo envelhecido e solitário que estamos visitando, criando seus amigos de brinquedo enquanto sofre os efeitos da Síndrome de Matusalém. Já o inspetor Gaff (Edward James Olmos), que acompanha Deckard em boa parte da sua investigação, deixa pistas ao seu herói e à audiência. Espalhando origamis e construtos humanos feitos de palitos de fósforo, é dele que obtemos a questão mais instigante a respeito do protagonista vivido por Harrison Ford: Seria ele também um replicante? Já Eldon Tyrel (Joe Turkel) é um Deus sem respostas, um criador incapaz de confortar suas criaturas, um engenheiro genético poderoso incapaz de interromper o fluxo de morte colocado em andamento desde o nascimento de seus filhos. Vivendo num mundo sem Deus ou de Deuses impotentes, o que resta ao replicante senão esmagar a ilusão – e o corpo – de seu criador em sua cúpula dourada?

No centro do drama, Blade Runner apresenta seus protagonistas num embate que tem início no tradicional jogo de herói contra vilões. Mas o que Ridley Scott faz é pouco a pouco inverter a balança, tornando o questionável e rabugento protagonista ciente de seus crimes e de sua covardia e alçando os pretensos vilões a seres de paixão, conflito e sentimentos que nos são muito mais atraentes do que o drama do seu protagonista. Ao opor Deckard a Pris (Daryl Hannah), por exemplo, no infantil e empoeirado apartamento de Sebastian, somos obrigados a nos questionar quem está perseguindo quem e quem tem razão nesta perseguição. Nossa resposta mais rápida é ninguém, apesar de nossos sentimentos penderem mais para a androide do que para o caçador. Num mundo de eternos simulacros, não seríamos também um simulacro de nós mesmos? A diferença entre humanos e replicantes, Scott sugere, é que eles ao menos estão cientes de sua natureza e estão fazendo algo para alterá-la.

O que nos leva a pensar nos dois protagonistas: Deckard (Harrison Ford) e Roy Batty (Rutger Hauer). O arco dramático de Deckard é construído de tal modo a transmitir a frieza e apatia do caçador de androides, que não tem pendores morais em alquebrar as ilusões de Rachel ou o corpo da replicante Zhora com palavras e tiros. Partindo do estereótipo do gênero noir tanto em seu herói alquebrado quanto em sua moralidade ambígua – contrastado com personagens femininas que também partem do imaginário do gênero e suas femme fatales – o que Deckard vivencia até o fim da película é a revisão das suas próprias posturas existenciais. E a tão alarmada verdadeira natureza replicante da personagem, sendo verdadeira ou não, fica a meu ver em segundo plano diante do verdadeiro aprendizado vivenciado por ele: desconectado dos outros e de si próprio, o que Deckard aprende em sua relação com Rachel e ao confrontar Roy é que não há diferença entre humanos e replicantes, entre nós e eles, entre o eu e o outro, exceto aquela criada pela brutalidade, pela insensibilidade, pelo distanciamento físico, psíquico ou social. E sendo ou não ele mesmo um replicante, o que importa no presente o fato de nossas memórias passadas serem falsas ou verdadeiras?

Por outro lado, Roy Batty, é um emaranhado de complexidades que explodem na tela a cada aparição luminosa e luciferiana de Hauer. Como o anjo caído – metáfora revelada numa instigante citação de William Blake e as chamas de Orc –, Roy cai na terra em busca de nova elevação e isso só será capaz através do encontro com seu criador. Os replicantes de Blade Runner vivem nos extremos do frio e do calor, esmagando glóbulos congelados ou exibindo-se com ovos fervidos, dançando entre o nascimento e a morte, no curto espaço de tempo e vida, alternando amor, carinho, erotismo, raiva e destruição. Muito se escreveu sobre Roy como o monstro de Frankenstein. Mas em Blade Runner ele é muito mais o efusivo anjo caído, o enérgico belo demoníaco, do que o monstro aterrorizante de sua contraparte cinematográfica.

O que nos trás à instigante galeria de personagens femininas do filme. Zhora (Joanna Cassidy) é o erotismo exacerbado, a stripper que dança com uma cobra, uma recriada Eva jogada em um decadente Jardim do Éden artificial. Já Pris dialoga com o imaginário da Lolita de Nabokov, sendo igualmente sensual e frágil. A cena em que ela se joga no lixo para “montar seu personagem” e atrair Sebastian exemplifica o alcance de sua performance, elemento que Daryl Hannah consegue emular em vários momentos do filme, oscilando em um mesmo take entre a inocência fingida e a ameaça calculada. Vestindo-se de boneca no clímax do filme, seu destino é o mesmo de Zhora, o destino das personagens femininas ao se transmutarem nos modelos da objetificação masculina. E isso, num filme que parte da estética noir – gênero que não raro depende justamente dessa objetificação como tropo inicial – é digno de nota.

Mas é em Rachel (Sean Young) que está a persona mais instigante de Blade Runner, em especial por ela comunicar aqueles raros momentos de transformação psicológica, quando passamos da ignorância à descoberta, do desconhecimento da vida ao conhecimento da morte, alteração que é tanto marcada pelo deixar as (falsas) memórias familiares quanto pelo abraçar as (verdadeiras) descobertas de si própria,  que incluem o desejo e o sexo. Rachel, para usarmos outro tropo blakeano, passa da inocência da ilusão à experiência da maturidade, sem deixar-se destruir no processo. Ao contrário. Diferente de Deckard, cujos efeitos de suas descobertas são sempre uma incógnita, Rachel lança-se no turbilhão do ser sem olhar para trás. Numa sociedade cujo principal perigo é a covardia advinda do conforto, Rachel deixa o Éden não sentindo saudades do paraíso perdido. Afinal, é o próprio mundo que ela tem pela frente, com todos os seus perigos, angústias e também descobertas. Não coincidentemente a coruja é associada a ela, como símbolo de sabedoria e conhecimento. Em termos visuais, é fascinante vê-la partir das roupas escuras e claras para as cinzentas, do cabelo arrumado e liso para o despenteado e crespo, da postura robótica para o caminhar firme e fluído.

Enquanto obra de arte, Blade Runner é um conjunto de elementos ficcionais e técnicos que resulta num filme sem igual e daí sua resistência à primeira versão equivocada e a sua primeira recepção morna, senão fria. Cada frame de sua película é uma aula de fotografia, iluminação, enquadramento e design. Cada roupa, adereço e detalhes que formam seus personagens e seu cenário amplificam a percepção de se estar assistindo a um filme hipnótico, efeito que só aumenta a cada sessão. Com uma trama relativamente simples em seu enredo – não em sua simbologia – trata-se de um filme que obriga a audiência a prestar atenção aos detalhes, a aspectos técnicos que espectadores desavisados tendem a deixar de lado, justamente pela natureza rápida e fugidia do audiovisual. E tudo isso emoldurado pela composição de Vangelis. Sua trilha tornou-se tão icônica que mesmo quem nunca viu o filme consegue reconhecer temas como “Blues” e “Love Theme”, além da enérgica e tensa “Music Theme”.

Enquanto narrativa, a perenidade de Blade Runner está também em acertar pelo menos duas previsões. Do ponto de vista social, sua antevisão de um futuro distópico, ainda mais aos nos aproximarmos do 2019 hipotético de seu enredo, é assustadora. O mundo criado por Scott é um cenário entulhado de coisas. É um futuro construído a partir de um passado que não vai embora, num eterno ferro velho de novidades, do qual o cinema é a grande evidência. Por outro lado, imerso nesse universo sem gravidade, onde não sabemos se vamos para a esquerda ou à direita, para cima ou para baixo – a própria experiência diária com as grandes cidades infindas e seus extremos arranha-céus e túneis de metrô –, o que o filme de Scott atualiza são os imorredouros temas do amor e da morte, da solidão e da completude, da busca pela origem diante da percepção da finitude. São replicantes buscando seu criador e suplicando por mais tempo, por mais vida, incapazes que são de aceitar o “time do die”.

Já de um ponto de vista existencial, mesmo trinta anos depois de seu lançamento, a pergunta sobre o que exatamente nos torna humanos persiste, mais necessária do que nunca, especialmente pelas nossas fixações com conexões digitais, simulacros de experiências e redes de sociabilidade mais imaginárias e pictóricas do que reais e corpóreas. Nesse sentido, nos encontramos como Rachel e Deckard, diante de um espelho ocular e oracular que questiona se aquilo que nos torna humanos é nosso código genético e a realidade das nossas lembranças ou o modo como reagimos à nossa mortalidade. Num mundo de desinformação e desconexão crescente como o nosso, será que estamos nos tornando menos humanos a cada dia? Os replicantes de Blade Runner estão aí para nos questionar sobre isso, com suas vidas curtas, com seus beijos desesperados, com suas fugas de vida ou morte, com seus olhares fustigados, olhares de quem caminha sempre, a cada segundo, sobre o afiado fio da navalha. Por que nos esquecemos de que nós, assim como os replicantes, nascemos já programados para a morte? Mais nietizscheneano do que blakeano nesse sentido, o que Blade Runner dramatiza é o aprendizado da morte enquanto fortalecimento da vida e de todas suas potencialidades.

Numa sociedade mais afeita a replicar do que a criar, Blade Runner propõem a implosão da consciência automatizada e acostumada aos falsos confortos da modernidade. Numa noite perpétua, nossas casas e quartos são igualmente sufocantes e aconchegantes, como compartimentos uterinos e tumulares de aconchego e finitude. Poucos de nós aceitarão deixar essas cadeias reais e mentais para trás e encarar o unicórnio de papel, prova de que não estaremos aqui para sempre, prova de que nossas lembranças não passam de sonhos, de que nossas certezas não passam de confortadores delírios. Uma pena que não viveremos para sempre. Mas quem vive?

Enéias Tavares é escritor e tradutor, além de dar aulas de escrita de ficção e literatura clássica na Universidade Federal de Santa Maria. Criador das séries literárias Brasiliana Steampunk e Guanabara Real, escreve a coluna Bestiário Criativo para o CosmoNerd. Nasceu numa fria noite de inverso e lembra com carinho dos primeiros quadrinhos que leu quando tinha cinco anos. Ao menos, é o que ele acha. Desde que reassistiu Blade Runner para escrever esse OpinaNerd, tem revisitado suas lembranças e questionado a veracidade de muitas delas. Na última vez que o viram, estava cercado por dóceis unicórnios de papel e geniosos escorpiões robóticos.